Por muito tempo, a literatura escrita por mulheres foi vista como mais intimista, confessional, extremamente autobiográfica e, de certo modo, menor ou menos importante do que a literatura de muitos dos nomes masculinos que alcançaram o status de cânone. Era como se enredos que partissem de um questionamento social ou de uma experimentação estética não pudessem brotar de mentes femininas. Como se mulheres, ao contrário de tantos imaginativos gênios, não possuíssem estilo, técnica ou amplo leque referencial — e soubessem criar apenas de modo literal, a partir de uma reconstituição das próprias experiências.
Ano passado, a pesquisadora Helena Kelly defendeu que a obra da escritora inglesa Jane Austen, por exemplo, traz mais do que é comumente apontado pelo senso comum. Paralelamente a questões como protagonismo feminino, romances ou representação de conflitos domésticos, estão também críticas à escravidão ou à Igreja. E, ainda pensando sobre a esfera doméstica, a única permitida para mulheres por muito tempo, é válido enfatizar que este não é um ambiente de menor valor. Na verdade, é um terreno de tensões e disputas políticas como qualquer outro, e isso não deve ser jogado para escanteio quando um trabalho artístico — feminino ou não — é analisado.
Mesmo nos dias atuais, muitos são os reducionismos que rotulam a escrita das mulheres — e muitas são as batalhas travadas pelas mulheres para conseguir alcançar visibilidade: nessa reportagem da VICE, é possível saber mais sobre a dificuldade que algumas autoras encontram para publicar no Brasil. E, em entrevista ao Suplemento Pernambuco, a escritora chilena Diamela Eltit afirmou considerar a literatura uma espécie de “patrimônio do masculino”.
Ela constatou também que “espaços artísticos, em princípio, propícios a estabelecer revoluções culturais, operam com os mesmos mecanismos que são visíveis em todo o aparato social” — ainda que exista, mais e mais, uma demanda por produções realizadas por mulheres.
Apesar dessa introdução, que parece rumar para um cenário catastrófico, existe também o que celebrar. Com as facilidades tecnológicas promovidas pela Internet, muitas são as iniciativas que agregam e disseminam o trabalho de mulheres que passeiam por diferentes gêneros literários. Com a intenção de divulgar e incentivar a escrita realizada por mulheres e de deixar o nosso público antenado com as novidades, o Camenas trouxe alguns projetos atuais que são tocados de modo independente. Hoje em dia, qualquer pessoa pode ter um espaço online com custos baixos ou até mesmo inexistentes. E é nadando a favor dessa corrente que diversas escritoras estão se organizando com o intuito de gerar visibilidade para os próprios trabalhos — e de ganhar voz a partir da multiplicação de forças.
A maior parte das iniciativas reúne escritoras iniciantes — e outras mais experientes — em uma mescla que busca fortalecer o cenário autoral brasileiro e feminino. Considerando que a Internet se desdobra em uma gama infinita de possibilidades e que a literatura possui capacidade semelhante de ampliação de universos, a junção de ambas faz com que cada sugestão de leitura carregue em si um alegre e potente labirinto.
O Mulheres Que Escrevem, por exemplo, começou como uma newsletter que logo se expandiu para outras redes e virou até mesmo uma série de encontros presenciais sobre escrita. Idealizado por Taís Bravo e Natasha R. Silva, o projeto — composto por uma equipe de quatro pessoas — conta com a colaboração de convidadas e tem como objetivo principal promover a publicação e profissionalização de escritoras. As editorias do Mulheres que escrevem, que atualmente utilizam o Medium como principal plataforma, incluem traduções, ficções, poesias, ensaios e entrevistas com escritoras.
O Fale Com Elas é um outro projeto que também se organiza no Medium. Criada por Isabella Costa, a iniciativa busca funcionar como uma revista digital encabeçada por mulheres e que publica contos, poesias, entrevistas e até mesmo resenhas de livros ou filmes. Mais uma publicação nos mesmos moldes das anteriores é A Panaceia.
O Zine Granada reúne histórias escritas por mulheres e, além dos textos de diversas colaboradoras, divulga também colagens e artes visuais femininas e autorais. Também em formato de revista digital, todas as edições lançadas até o momento podem ser vistas aqui.
Já a Revista Oceânica funciona como um blog literário cujo conteúdo é focado apenas na produção autoral e feminina, com uma atenção especial para a imensidão poética que habita cada mulher. De acordo com as editoras Maíra Ferreira e Danielle Magalhães na apresentação do projeto, o intuito é enfatizar a diversidade de vozes e a força da literatura brasileira contemporânea produzida por mulheres — “das já conhecidas pela crítica às que ainda não foram publicadas".
Portanto, ainda que um panorama de desafios continue a se desenhar mesmo para as escritoras dos dias de hoje, existe também esse fluxo otimista e produtivo, mostrando que a produção feminina é imensa e diversa. A última edição da Flip (Festa Literária Internacional de Paraty) foi a primeira a contar com uma maioria de autoras do sexo feminino e, recentemente, o Grupo Record reativou a Rosa dos Tempos, selo voltado exclusivamente para a publicação de obras assinadas por mulheres. Com iniciativas que, de todos os lados, reforçam a importância das escritoras brasileiras, só podemos esperar que os mais variados projetos — dos pequenos aos grandes — sigam se entrecruzando e garantindo espaço para a arte produzida por mulheres.
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