Em entrevista ao Camenas, a escritora e editora Larissa Mundim falou sobre perspectivas do mercado editorial atual, cenário independente, Hilda Hilst e muito mais.
Foram muitas as vezes em que Hilda Hilst, homenageada da Flip (Festa Literária Internacional de Paraty) deste ano, deixou clara a preocupação que possuía em relação ao mercado editorial brasileiro. Além disso, ela refletia bastante sobre questões como formação de público e recepção da crítica especializada. Quem escreve, afinal, quer que alguém leia, não é mesmo? E a leitura é uma ferramenta importante tanto para formação intelectual quanto para o processo de busca interior de um indivíduo. Educação e autodescoberta são conceitos que, quando caminham juntos, apontam para um rico caminho de escolhas e bem-estar.
Com o intuito de conectar passado e presente, conversamos com a goiana Larissa Mundim, escritora, editora e muito mais, que está sempre antenada nas mudanças do mundo da leitura — e do mercado editorial como um todo. Ela é a mente por trás de projetos como a Nega Lilu Editora e a e-cêntrica, mapeamento do cenário nacional gráfico e literário que se tornou também uma feira de publicação independente. Além disso, é autora dos livros Sem Palavras (2013), Agora eu te amo (2014), Operação Kamikaze (2015), faz rs (2016) e do experimento gráfico-literário Prepiscianas – vol. 1, que tem coautoria de Carol Schmid.
Como você percebeu que, além de escritora, precisaria ser também produtora, divulgadora cultural e tantas outras coisas? Como iniciou o seu caminho na arte, literatura e mercado independente?
Olhando para a minha trajetória, vejo coerência nas coisas que faço e na mulher em que me tornei. Fui uma boa leitora desde a infância e quis ser escritora já na adolescência. Eu me recordo de sempre ter tido uma curiosidade especial para as artes, especialmente pela música, pelo cinema e pela literatura. Estudei arte contemporânea depois de me formar em jornalismo e trabalhei com comunicação na dança por mais de dez anos. Compreendi mais profundamente a cultura como direito humano a partir da minha aproximação do movimento social. A cultura como identidade de um povo e de onde tiramos força para resistir.
Com colaboração de Valentina Prado, escrevi meu primeiro romance, Sem Palavras, entre 2009 e 2010. Quando o transe da escrita intermitente passou, me vi desafiada a criar condições para que a história de Nega & Lilu fosse consumida por leitores e leitoras. Totalmente sem apoio financeiro, apostei tudo no conhecimento que tenho em comunicação social para alavancar um plano a médio prazo, que se iniciou com a abertura do blog Nega Lilu e a criação do Coletivo Esfinge para comentar, transformar e difundir a obra, antes que ela viesse a público. Um trabalho que envolveu mais de cem pessoas em todo o mundo e que se manteve por cinco anos, dando visibilidade a processos criativos em diversas linguagens artísticas. O livro Sem Palavras (foto) foi a única fonte criativa do Coletivo Esfinge. Toda a estratégia está registrada em Operação Kamikaze (2015), publicado pelo Selo Eclea.
Costumo dizer que a Nega Lilu Editora é o produto mais bem-sucedido deste trabalho coletivo. Ela surgiu para trazer Sem Palavras a público. A grande maioria das pequenas editoras independentes surge assim, estimulada pela autopublicação. E não tem nada de errado nisso, pelo contrário, existe muita coragem e valentia envolvidas. Autopublicar-se é uma atitude punk. E isso é a minha cara.
Como surgiu a ideia da e-cêntrica e quais foram os seus aprendizados durante o mapeamento? Quais as estratégias traçadas para valorizar e apoiar escritores independentes e, principalmente, os que estão fora do eixo RJ-SP?
Em dezembro de 2014, eu tinha acabado de lançar meu segundo romance de ficção, Agora eu te amo. Uma pilha enorme de livros na minha frente estava me provocando. Era necessário circular aquelas histórias publicadas a partir de um prêmio concedido pelo Fundo de Arte e Cultura de Goiás. Vivenciando aquela angústia natural que autores publicados conhecem, me chamou a atenção uma pesquisa publicada pela Folha de S. Paulo que tinha como objetivo investigar como o escritor brasileiro paga suas contas. Percebi que o jornal e o jornalista se esmeraram na busca de depoimentos, era muita gente consultada. E, apesar de ter me identificado com o resultado da pesquisa, não me vi representada: a maioria dos autores e autoras consultados eram residentes nas regiões sudeste e sul. Havia uma amostra pequena do nordeste e, no Brasil Central, ouviram pessoas de Brasília. Ninguém do norte. Também senti falta de maior representatividade dos negros. Indígena nenhum foi ouvido. Aquilo me incomodou.
A e-cêntrica é fruto deste incômodo. Da percepção da sub-representação existente na cadeia produtiva livreira. Li muitos artigos, conheci pessoas, debati pontos de vista e, por meio da Casa da Cultura Digital, criei o portal e-centrica.org em outubro de 2017. O primeiro produto deste trabalho é o mapeamento da produção gráfica-literária independente, uma ação permanente que apresenta e reapresenta o Mapa da Publicação Independente anualmente.
A estratégia é a seguinte: identificar pares e agentes estratégicos em todas as regiões e conectar estes autores e autoras, coletivos criativos, artistas gráficos e pequenas editoras independentes. A construção de redes produtivas a partir desta iniciativa já tem desdobramentos imprevisíveis, é fantástico. No entanto, a missão da e-cêntrica é bem definida: apoiar ações de inovação da cadeia produtiva gráfica e literária. Acredito que inovar um sistema implantado no século XIX e ainda vigente passa, necessariamente, pela qualificação de leitores, pela valorização da autoria, pelo redimensionamento da atuação das editoras, distribuidoras e pontos de venda, e pela busca de novos modelos de negócios.
“Se não há distribuição, não há venda”, disse Hilda Hilst em entrevista à TV Cultura na década de 1990. Em outras entrevistas, ela reclamava que muitos editores não valorizavam os escritores e a escrita, pensando apenas no viés mercadológico da coisa. Ou então dizia que a distribuição não era bem-feita, os livros ficavam guardados. Como você enxerga a questão da distribuição e do interesse editorial nos dias de hoje?
Quem conhece a obra de Hilda Hilst percebe que a difusão foi uma preocupação considerável nos rumos tomados pelo trabalho desta escritora maravilhosa. Realmente, uma questão recorrente na cabeça do escritor é: se não sou lido, por que devo publicar?
É muito válida a reflexão de Hilda, num tempo em que a circulação dos livros ocorria de maneira ainda mais delimitada pelos contratos com grandes editoras e distribuidoras capazes de garantir exposição nas vitrines e gôndolas das grandes livrarias do Brasil. No mercado tradicional ainda é assim! Mas, de lá pra cá, algumas variáveis se flexibilizaram à medida que a cultura da autopublicação foi se fortalecendo. E mais: as mídias sociais possibilitam a criação de veículos próprios e a comunicação em rede auxilia na difusão dos conteúdos nestes canais. Com o desenvolvimento do e-commerce, também temos consumidores mais articulados e ativos.
"Fico imaginando que Hilda teria milhares de seguidores no Twitter."
Quando eu criei a e-cêntrica, a busca de alternativas de circulação para a produção gráfica e literária independente surgiu imediatamente como um dos principais gargalos. Perguntas que rondavam meus pensamentos: Como chegar até o meu público leitor? Como fazer com que o público leitor chegue até mim? Posso circular minha obra sem depender de uma distribuidora? Eu realmente necessito de uma editora para publicar? Só eu que acho abusiva a comissão de venda cobrada pelas livrarias?
Descobri que não há resposta definitiva para estas questões, porque as possibilidades são inúmeras com as ferramentas que estão disponíveis e em processo avançado de democratização. Me convenci, no entanto, de que não precisamos continuar repetindo um modo operacional que inventaram no século XIX, se o tempo é propício para inovação.
Então a política da e-cêntrica, que tem total adesão da Nega Lilu Editora, é a busca de novos caminhos.
O que faz uma editora ser independente não é o porte dela, como pensam alguns, é a maneira como escoa sua produção. Uma editora independente realiza sua própria distribuição e não ancora, majoritariamente, suas vendas em livrarias e outros pontos de venda. As feiras de publicações independentes são uma importante ação de apoio à inovação do mercado editorial, mas é necessário criar outras tantas estratégias para atingir maiores escalas. Por isso trabalhamos tanto, porque estamos atuando de ponta a ponta na cadeia produtiva. E precisamos nos organizar! Agora é o momento.
Porque repare que as editoras tradicionais de grande e de médio porte já estão estudando o diferencial dos projetos editoriais de baixa tiragem realizados pelas indies. Este mercado todo craquelado está em desespero. E vão fracassar neste processo de apropriação de know-how que se anuncia se a reinvenção não passar, especialmente, pelas estruturas operacionais.
Em entrevista ao escritor Caio Fernando Abreu no final da década de 1980, Hilda Hilst alegou se ressentir por não ser lida e levantou a hipótese de o público não estar disposto a mergulhar em temas mais densos, que o obriguem a pensar. Ela falou também sobre a miséria e o analfabetismo que existiam no país na época. Hoje ela é um cânone literário, mas a questão da falta de leitores no Brasil segue em pauta. Que medidas você considera importantes para a resolução desse problema?
A quarta edição da pesquisa Retratos da Leitura no Brasil, divulgada pelo Instituto Pró-Livro, informa que é crescente o número de leitores no País, embora seja questionável o perfil desse “leitor”. Entre 2014 e 2016, subiu em seis pontos percentuais o número de pessoas que declaram ter lido parcialmente ou integralmente algum conteúdo nos três meses anteriores à coleta de dados.
Num país de mais de 200 milhões de habitantes, eles eram 56% dos brasileiros quando o estudo foi realizado. Uma multidão considerável, que sempre pode ser ainda maior. Mas note que mais da metade deste universo de leitores declara ler um só livro, a Bíblia. Ou seja, não adianta ler mais, é preciso ler melhor, com mais diversidade.
Por isso, penso que não existirá uma política nacional séria e eficaz para o livro e a leitura sem dedicação à formação de leitores desde o ensino fundamental e também à qualificação de leitores de todas as idades. As bibliotecas públicas devem se transformar em espaços acolhedores, os livros utilizados pela escola precisam ser mais atrativos — e não pasteurizados, como quer emplacar o Projeto de Lei 106/2017 —, a cadeia produtiva deve ser reinventada com redefinição da atuação das editoras, distribuidoras e pontos de venda, de forma que todos os agentes (players) apoiem as ações básicas que, efetivamente, são investimentos na ampliação do número de consumidores para este mercado em falência. No governo da presidenta Dilma, o Plano Nacional do Livro e Leitura (PNLL) teve suas diretrizes elaboradas. No entanto, sua implantação é lentíssima, apesar de urgente.
Você consegue dedicar tempo à Larissa escritora em meio a tantas atividades? Acha que o ideal seria o artista, o escritor, poder se dedicar somente à própria arte, ou acredita que outras demandas não atrapalham o fazer criativo?
Pois é... Não tenho tido tempo para a escritora. Meu último livro (faz rs) foi publicado em dezembro de 2016. Continuo leitora assídua e entusiasta da produção gráfica e literária independente, mas me falta um determinado clima para a escrita criativa. Estou bastante focada nas questões que envolvem políticas para a inovação do mercado editorial, porque sinto que este é um momento de oportunidades para projetos não hegemônicos prosperarem.
Quais são as suas principais referências literárias? E quais os seus próximos projetos a serem executados?
Na juventude, li muito os clássicos da literatura de todo o mundo. Já faz um tempo que dedico o meu tempo a explorar livros escritos por mulheres brasileiras. Elas são minhas referências mais atualizadas.
Como escritora, não tenho projetos para o momento. Mas, como editora, tenho especial interesse na publicação de autoras negras e indígenas. Novos autores de Goiás também me deixam curiosa, sobretudo aqueles que almejam circulação intergaláctica da obra.
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