Olhe ao seu redor e perceba: o tempo é um causador de marcas em praticamente tudo que existe. O papel que amassa, as folhas que caem, os cortes que deixam cicatrizes, a bolsa cuja alça arrebenta ou a testa que enruga são alguns dos infinitos exemplos que mostram como rasgos, quedas, fraturas, vincos ou ressecamentos fazem parte de nossos cotidianos.
A impermanência é um lembrete que os budistas costumam fazer para enfatizar não apenas que todo começo tem um fim — mas também que o agora é precioso e único.
Indeléveis e inevitáveis, as marcas denunciam a efemeridade do agora ao mesmo tempo em que carregam histórias. Porém, vivemos em uma era de pressa e consumo que aponta defeito no que pode ser considerado simplesmente uma característica. A novidade ofusca a eficiência do que ainda tem muito a oferecer.
Em uma lógica inversa, uma técnica japonesa chamada kintsugi — ou kintsukuroi — é utilizada para revitalizar cerâmicas quebradas. Tais palavras significam, respectivamente, “emenda de ouro” ou “reparo com ouro” e simbolizam uma tradicional arte que busca celebrar cicatrizes e preservar o que é antigo. Com o kintsugi, objetos que poderiam ser descartados passam a chamar atenção pelo valor atribuído a eles por meio do trabalho de reparação.
A técnica, centenária e artesanal, é simples. Uma mistura que envolve laca e ouro (ou outros metais) é utilizada para colar os fragmentos de uma peça que, de algum modo, tenha sido danificada.
As emendas, no entanto, não são escondidas: a mistura metalizada coloca em evidência as marcas que revelam que naquela cerâmica existe uma história particular.
E essa particularidade é ressaltada também pela exclusividade conferida ao objeto por meio do kintsugi, já que cada peça fica de um jeito único — e com a possibilidade de ser ainda mais bonita do que era antes.
É dito por aí que tudo começou há mais de cinco séculos, quando uma tigela muito estimada por uma figura de autoridade da época quebrou-se em pedacinhos. Segundo a lenda, o objeto foi enviado para a China com o objetivo de ser consertado, mas o resultado não foi satisfatório. Então, de volta ao solo japonês, artesãos locais ficaram encarregados pelo reparo e inventaram a técnica — que segue os preceitos do wabi-sabi, um conceito com origem no zen-budismo que consiste em ver o belo no que é simples, imperfeito e impermanente.
Tudo isso torna o kintsugi mais do que uma arte ou técnica, mas uma filosofia que nos faz refletir sobre questões diversas, como o valor do que é antigo, o desperdício e a transitoriedade. A prática traz em si também um exercício que ensina a extrair algo de bom das adversidades. O que parece um problema nem sempre é um problema, talvez precise apenas ser observado por outro ângulo. E treinar não apenas o olhar, mas nossas próprias ações para aceitar o mundo ao redor com mais elasticidade e sensibilidade, com certeza é um ótimo caminho para que a gente observe os outros e nós mesmas de modo igualmente contemplativo e cheio de admiração. Brindemos à vida com nossas xícaras!
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