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Amor de mães é humano



Aproveito o domingo das mães para comentar o livro As Avós, de Doris Lessing, correndo o risco de causar polêmica (adoro), pois geralmente a data nos remete a uma imagem feminina a ser idolatrada, ao contrário da narrativa da autora britânica, que nos faz ir ao encontro do lado humano e perecível dessa figura.


Antes de comentar a história, quero contar como foi o meu processo de leitura. Como o livro não era meu, mas de uma amiga que o ofereceu como sugestão de bibliografia para o Camenas, segurei-o com muito pudor pra não deixar nele nenhuma marca. Nem pensar em segurar um lápis enquanto o lia, muito menos usar o instrumento para marcar as páginas, pois isso poderia violar o acordo tácito dos empréstimos. A vontade de sublinhar uma passagem, destacar uma fala, anotar um insight nas próprias páginas do livro precisou ser abafada, restando a mim a saída da leitura livre e desimpedida de cuidados professorais.



Foi ótimo! Há muito tempo eu não lia por ler, para sentir a história sendo contada informalmente numa varanda. Isso! Durante a leitura, eu fui transportada para uma varanda à beira-mar, ensolarada, arrefecida por uma brisa fresquinha. Nesse clima primavera-verão, fui conhecendo a escrita de Doris Lessing, autora que eu ainda não tinha tido a oportunidade de ler, apenas sabia do seu Nobel, mas sem muita referência.


Quem me emprestou As Avós é avó e, com tanta avó na cabeça, ao encarar a capa, o título da obra e a foto da autora na dobra da contracapa, me vieram os estereótipos que carrego sobre essa mãe da mãe ou do pai. Inevitavelmente também pensei na Chapeuzinho Vermelho e sua avozinha desprotegida, mas, ao contrário, o que foi surgindo ao longo da leitura foi uma alcateia de avós (risos) guiada por uma loba-caçadora (muitos risos).


Doris Lessing nos anos 50, pelo olhar de Ida Kar

Deixe-me voltar à calma, pois qualquer exagero ou gracinha da minha parte pode confundir você e causar injustiças ao texto excelente, que trata da relação simbiótica entre duas mulheres que se conhecem desde a infância e são vizinhas numa cidadezinha da bacia de Baxter. Elas se casaram e tiveram filhos, dois homens, que também se tornaram próximos, até que algo desconcertante acontece. O fato a princípio perturbador para o leitor, ao ser encarado com naturalidade pelos personagens, acaba provocando no público a reflexão sobre amizade, maternidade, maturidade, sexualidade e convenções sociais.


Cena do filme 'Amor sem pecado' (2013) baseado na obra original de Doris

Não vou contar a questão controversa, pois tiraria a graça da leitura para quem ainda pretende ler a obra ou assistir 'Amor sem pecado', filme baseado nela, mas preciso colocar a minha opinião sobre o imbróglio e suas consequências, para que nós, algum dia ou por email, possamos voltar a conversar sobre tudo isso.


Para mim, a maneira como certos personagens passaram a se relacionar a partir de um dado momento da história só é indigesta se considerarmos que o vínculo entre eles é familiar. Para chegarmos a qualquer conclusão a respeito disso, precisamos nos lembrar de que os envolvidos no abacaxi não moravam sobre o mesmo teto nem havia consanguinidade entre eles. Por outro lado, também precisamos considerar que os vínculos afetivos que os uniam criaram uma associação incomum, talvez benéfica para todos, o que ainda tenho minhas dúvidas.



Quanto às consequências dos atos praticados, elas são óbvias na medida em que atingiram pessoas que os ignoravam ou não faziam parte do jogo estabelecido pelo grupo. Por isso, é legítimo que os personagens à parte do caso ficassem enciumados e se sentissem traídos. Contudo, na minha opinião, não cabe ao leitor se escandalizar com o ocorrido, pois nada lhe foi escondido pelo narrador.


A leitura de As Avós serve, no mínimo, para nos fazer perceber que essas mães reiteradas são pessoas tão comuns como eu e você, passíveis de erros, detentoras de fraquezas e, também, cheias de humanidades. O título e as primeiras páginas da narrativa de Doris Lessing sugerem mulheres perfeitas que assumem um papel materno dobrado, mas que aos poucos vão revelando, de leve como a brisa do mar de Baxter, que são gente.



"Sempre me pareceu curioso que enquanto as deusas são veneradas, na vida cotidiana, as mulheres são consideradas inferiores e relegadas a uma posição secundária" - Doris

A autora faz o leitor sair do mundo infantil estabelecido no início, onde vidas louras de olhos azuis se desenvolviam harmoniosamente numa pacata cidadezinha à beira-mar, para um mundo adulto, desconfortável, após uma nora, mulher morena, transtornada com o que acabara de descobrir, quebrar toda a fantasia. Duas noras, melhor dizendo, porque os personagens principais do livro são duplos, duais, yin-yang. Com o revés na cena paradisíaca, passa a pairar na cabeça do leitor o seguinte trecho de Hamlet: "Há algo de podre no reino da Dinamarca."


Há mesmo, e é contando esse podre que Doris Lessing mostra toda a sua maestria. Na medida em que escreve, ela cada vez mais o faz feder menos, até conseguir colocar o olfato do leitor em xeque. Grande escritora!

A escritora Doris Lessing em Nova Iorque em 1988, na famosa editora Alfred A Knopf

Eu gostei de As Avós, gostei mais ainda de ter lido o livro da forma que fiz. Acho que, com lápis em riste e um olhar pontual, eu perderia de conhecer a Doris Lessing pelo que ela merece, perceber sua habilidade de tratar de assuntos adversos com suavidade, captar sua elegância ao transformar o que seria um escândalo em algo trivial e humano. Vovó fantástica!


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