"Soergo meu passado e meu futuro
E digo à boca do Tempo que os devore.
E degustando o êxito do Agora
A cada instante me vejo renascendo."
Hilda Hilst. Júbilo, Memória, Noviciado da Paixão (1974).
Estrofe da parte VI do poema Moderato Cantabile.
Eu sabia pouco de Hilda Hilst (HH), tinha lido apenas o início de Cartas de um Sedutor (1991), de cuja história nem me lembrava, o que me fez recorrer a quem leu para confirmar o nome do livro, já que não o tenho mais e minha única recordação era a da linguagem culta e vulgar que a autora empregava ao mesmo tempo na narrativa, algo que me fez vincular, à época, HH à imagem de uma senhora intelectual de boca-suja. Hoje, mais de quinze anos depois, desafiada a conhecê-la direito por se tratar da autora homenageada da Flip 2018, precisei saber mais dela e de sua importante obra. Para minha surpresa, encantei-me por suas poesias atingíveis, algo bem diferente de minha experiência lendo seus romances. Percebi que, nessa segunda aproximação, eu entrei no mundo de HH por outra porta, talvez a melhor pra mim (cada um tem a sua).
Você sabia que existem pontos de entrada nas obras de arte?
Inclusive, isso é um dos meus divertimentos nas visitas que faço aos museus, quando fico à frente dos quadros ou das esculturas tentando descobrir seus pontos de entrada, o que me ajuda a perceber o caminho que meu olhar percorre naturalmente nessa apreciação e no deleite daquilo a que me proponho contemplar. Geralmente, são pontos de luz! E a poesia de HH, para mim, foi a luz no conjunto dos textos dela a que tive acesso. Não foram muitos, pois a maioria de seus livros está com edição esgotada, e eu consegui comprar pouquíssimos usados; de primeira mão, apenas os que já foram republicados visando à festa literária de Paraty.
Isso até me fez pensar num trocadilho irônico: será que HH esgotou-se ou foi esgotada?
Infelizmente, Hilst não foi muito conhecida antes de publicar sua trilogia pornográfica, algo que ela mesma disse ter feito de propósito para desafiar o mercado editorial que a condenava, o que, de certa forma, querendo ou não, atraiu-lhe leitores menos puros.
A seguir, apresento-lhe cinco poemas de Hilda Hilst que selecionei do livro Da Poesia, publicado em 2017 pela Companhia das Letras (foto), que reúne todos os poemas já editados mais versões e esboços de alguns inéditos, além de desenhos dela. A escolha foi emocional e, ao lê-los de fio a pavio, fui destacando os que mais me tocavam. Desses, separei os cinco que julguei melhores para exemplificar o meu maravilhamento pela HH poeta, tentando também mostrar momentos diferentes de escrita da autora.
Por que cinco? Porque sim, ou, para ficar mais poético, porque cinco são os sentidos. Se você ainda não conseguiu penetrar no mundo de Hilda Hilst, espero que esta seja uma bela oportunidade de entrada, mas, se antes caminhou nesse universo, eis uma ocasião de reencontro.
V
Acreditariam
se eu dissesse aos homens
que nascemos
tristemente humanos
e morremos flor?
Acreditariam
que a presença é ausente
quando o olhar se perde
nas alturas?
Acreditariam
ser a nossa vida
vontade consciente
de não ser?
E ser luz e estrela
água, flor.
Hilda Hilst. Balada de Alzira (1951).
XII
Se não vos vejo
Vos sinto por toda parte.
Se me falta o que não vejo
Me sobra tanto desejo,
Que este, o dos olhos, não importa.
(Antes importa saber
Se o que mais vale sentir
E sentindo não vos ver.)
São coisas do amor, senhor,
Desordenadas, antigas.
E são coisas que se inventam
P'ra se cantar a cantiga.
Não são os olhos que veem
Nem o sentido que sente.
O amor é que vai além
E em tudo vos faz presente.
Hilda Hilst. Trovas de Muito Amor para um Amado Senhor (1960).
X
As laranjas têm alma?
Tu me perguntas calmo
A testa no fruto.
Examinas. Desenrolas
A casca, o amarelo
Escorre palpitante
O sumo sobre a mesa.
Proeza da tua fome.
Tu ainda me amas?
Eu te pergunto lívida
Na manhã de tintas
Amarelo e ocre
Pulsando no meu sangue.
E te levantas, me olhas
E te fazes cansado
De perguntas antigas.
Hilda Hilst. Júbilo, Memória, Noviciado da Paixão (1974).
Parte X do poema Árias Pequenas para Bandolim.
XXIX
Te sei. Em vida
Provei teu gosto.
Perda, partidas
Memória, pó.
Com a boca viva provei
Teu gosto, teu sumo grosso.
Em vida, morte, te sei.
Hilda Hilst. Da Morte. Odes Mínimas (1980).
Parte XXIX do poema Da Morte. Odes Mínimas.
LVI
Areia, vou sorvendo
A água do teu rio.
E sendo rio
Tu podes me tomar
Minúscula, extensa
Ampulheta guardada
Esteira, desafio.
Areia, encharcada
Recebo tuas palavras d'água
Sumidouro, aguaça
Em água-mel te prendo.
Areia, vou te tomando vasta
Ou milimétrica, lenta
Um rio de areia e caça
Luminescente, tua,
Uma presa de água.
Hilda Hilst. Cantares de Perda e Predileção (1983).