Na simplicidade de uma vida comum, não reside apenas a possibilidade de identificação. A Gorda, de Isabela Figueiredo, mostra também como o cotidiano de qualquer pessoa traz em si a possibilidade de beleza e complexidade. Para perceber isso, basta deixar florescer a capacidade de enxergar o outro.
A protagonista, Maria Luísa, escreve bem, trabalha como professora e gosta de ler, o que facilita um coração movido por paixões que envolvem pessoas e palavras. Ela mora com a família, cuida de animais e, em rompantes de fome e angústia, come porções generosas de pão com marmelada. A rotina da personagem não é recheada de feitos extraordinários. No entanto, é rica, intensa e repleta de observações.
É válido ressaltar que um aspecto importante da história já está diretamente explicado no título da obra. Maria Luísa é gorda. E isso faz com que ela se torne, em muitos dos ambientes que frequenta, um alvo fácil de discriminação. “A gorda” é um rótulo constantemente imposto a esta mulher de modo pejorativo e desumanizador. Portanto, as experiências que a personagem vivencia são atravessadas por essa condição que, em uma sociedade mais livre e menos vigilante, poderia ser vista como mera característica física. Ela é gorda, sim, entre várias outras coisas que abrangem corpo e mente — e entre qualidades, defeitos e insights preciosos que fogem dos estereótipos que circundam as abundâncias corporais.
O grande amor de Maria Luísa, aliás, é um dos que colaboram com esse ciclo de manutenção de preconceitos, ao escondê-la dos amigos. “O David não sabia que a sua vergonha não implicava apenas a sua rejeição, mas a de toda a cultura que nos envolvia através dele” é o que constata a personagem, envolta em uma amargura racional de quem sabe que vive uma realidade injusta e castradora apenas porque não corresponde ao padrão de beleza vigente. No entanto, o livro traz mais do que o retrato de uma situação individual. Tensões políticas, insatisfações pessoais, análises sociais, relações familiares, amores e amizades são costurados em uma rede densa e de fácil digestão — o que lembra um pouco a atmosfera cativante e doméstica da italiana Elena Ferrante em sua Série Napolitana (em breve nas telas da HBO).
Camadas múltiplas são desdobradas de um cenário amplo e diverso onde os momentos históricos e políticos não atuam apenas como pano de fundo, mas como sujeitos ativos e influenciadores dos acontecimentos. Portuguesa, nascida quando Moçambique era uma colônia de Portugal na África, Maria Luísa carrega marcas desse período, e tais marcas inevitavelmente moldam suas visões de mundo. Talvez a protagonista carregue também um pouco da sua criadora, Isabela, que nasceu no início da década de 1960 em Lourenço Marques, nome que era dado antigamente a Maputo, capital de Moçambique.
Segundo uma advertência nas páginas iniciais do livro, “todas as personagens, geografias e situações descritas nesta narrativa são mera ficção e pura realidade”.
E entre a tênue linha que separa uma coisa da outra, está a possibilidade de refletir profundamente sobre o mundo ao nosso redor — e o universo dentro da gente. A Gorda é um romance ácido e de humor obscuro que nos acalenta mesmo nos momentos mais pessimistas por conta da sensação de que viver pode ser realmente um processo difícil e solitário para diferentes tipos de pessoas. E não há máscara ou rótulo que afaste o ser humano da brutalidade que é a experiência de estar vivo.
Saiba mais:
Em 1975, Isabela Figueiredo saiu do sudeste africano e mudou-se para Portugal. Essa transição se tornou uma matéria-prima fundamental na obra da autora: a questão é abordada em A Gorda e no Caderno de Memórias Coloniais, lançado em 2009. A obra mostra a história de uma menina a caminho da adolescência que vive transformações individuais enquanto o Império Colonial Português entra em seu período final. O cenário que ambienta a narrativa é Lourenço Marques, que recebeu este nome até meados da década de 1970.
Além de escritora, Isabela é também jornalista, professora e, segundo Mia Couto, “uma das mais originais e poderosas vozes da nova literatura portuguesa”. Este ano, ela é uma das convidadas da Flip — Festa Literária Internacional de Paraty, que acontece até este domingo, e aproveitará a ocasião para lançar uma edição brasileira do Caderno. De acordo com O Globo, a publicação, considerada um sucesso de crítica, foi adotada pelo meio acadêmico e “promoveu um intenso debate sociológico sobre pós-colonialismo e memória social”. Já o romance A Gorda, primeiro da autora, é de 2016 e teve sua estreia no Brasil há alguns meses.